quinta-feira, 14 de março de 2013

A queda do Império Romano e a conversão da Filosofia

Posted by Hijikata Toshizou on 06:50 with No comments


O Império Romano teve seu início poucas décadas antes do nascimento de Jesus, cuja mensagem iria mudar decisivamente o pensamento ocidental. Augusto, sobrinho de Júlio César, tornou-se o primeiro imperador romano em 49 a.C., pondo fim ao período da república romana.
Durante cerca de trezentos anos, o Império Romano se manteve praticamente intacto, estendendo-se da Península Ibérica a Pérsia. Governado por Roma, adotava uma política de respeito as culturas e as religiões locais, produzia por meio de uma escravagista – com tecnologia avançada para a época e grande organização – e era defendido por disciplinadas legiões militares. Ao contrário, da democracia grega e da república romana, onde os cidadãos participavam do governo, durante o Império, Roma passou a divinizar o imperador, que se tornou o único detentor de um poder tirânico. Nesse contexto, muitas vezes, ele acabava assassinado para dar lugar a outro imperador.
O Império também se caracterizava pelo enorme contingente de escravos e de miseráveis – perto de uma pequena elite governante, com a ausência de uma classe média – o que, a longo prazo, foi uma das causas de sua ruína. A rígida estrutura social não permitia praticamente nenhum tipo de ascensão, com o agravante de que a aristocracia romana considerava que os plebeus deveriam ser mantidos na base servil da sociedade.
A pax romana – conhecida como um período de pelo menos 250 anos, em que as províncias imperiais viveram sem a ameaça de guerras e protegidas pela lei romana – foi, na verdade, uma época de submissão e dependência de muitos povos. Entre os povos dominados estavam os gregos, que foram reduzidos a escravidão e submetidos ao pagamento de pesados impostos. Havia ainda um povo que particularmente se incomodava com a presença romana, com seus costumes e suas imposições: o povo israelita, que nos anos 70 da era cristã se rebelou contra Roma, provocando o que viria a ser conhecido como diáspora (a dispersão dos judeus pelo mundo e o exílio permanente de Israel, que apenas no século XX foram repatriados).
Para o judaísmo, a divinização do imperador, os costumes permissivos dos pagãos, a exploração dos impostos e a profanação de sua terra pela simples presença de não-judeus (considerados adoradores de ídolos) eram fatos difíceis de aceitar. Foi no seio da sociedade judaica que nasceu o homem que produziu um impacto permanente na cultura pagã, de uma forma que mudou o mundo: Jesus.
A mensagem de Jesus, enraizada no judaísmo, era completamente oposta aos valores romanos e pagãos em geral. A religião pagã era politeísta, mitológica, permeada de cultos erotizados e não tinha uma ética rígida. Basta observar que os deuses reproduziam as mazelas humanas: praticavam incestos e estupros, eram vingativos, ciumentos e imprevisíveis. A relação das pessoas com os deuses era de oferendas para o aplacamento de sua ira e a conquista de sua proteção. Em uma sociedade rigidamente hierarquizada, tratava-se de uma religião que não oferecia nenhuma alternativa, consolo ou esperança para os pobres e marginalizados.
Já entre os profetas judeus, presentes no que hoje conhecemos como Velho Testamento, havia ressonâncias de críticas sociais, advertências contra os abusos do poder e a opressão dos ricos. Mas a mensagem do Evangelho de Jesus avançou ainda mais nesse sentido, pois é completamente igualitária, irmanando todos os homens. Ela dirige-se ao povo, trazendo a idéia de um Deus único – o que já estava presente na crença judaica – mas um Deus paterno, justo, amoroso e acima das imperfeições humanas. Um Deus que justamente acolhia os mais fracos, os mais desprezados, os mais infelizes, aqueles que constituíam a escória da sociedade. Foi junto a este que, em primeiro lugar, a mensagem cristã encontrou guarida.
A religião politeísta, a essa altura, já se tornava puramente um mito poético para as elites sociais. Havia também, entre os socialmente bem colocados, um vácuo de espiritualidade, além do declínio dos valores cívicos, políticos e familiares que se deu durante o Império, em decorrência da corrupção generalizada dos costumes. Por isso, com o tempo, a mensagem cristã também foi ganhando a aristocracia.
O cristianismo espalhou-se pelo Império Romano, em um primeiro momento, pela obra de Paulo de Tarso, que percorreu a pé as províncias do Oriente e do Ocidente, chegando até a Espanha e fundando os primitivos núcleos cristãos. Pode-se dizer que ele – um judeu helenizado com cidadania romana – foi o primeiro a lançar as bases de uma nova filosofia teológica, pois suas epístolas já continham várias idéias embrionárias que seriam trabalhadas pelos patrísticos (os pais da Igreja, que se incumbiriam de formular um cristianismo filosófico ou uma filosofia cristã).
O termo filosofia cristã é controvertido, porque, em última instância, trata-se de um pensamento submetido a fé e muitos não a aceitam como Filosofia, pois carece da liberdade racional própria do indagar filosófico. O cristianismo não é considerado uma Filosofia, pois não partiu de um método de investigação racional, e sim de uma revelação divina que se deu por meio da mensagem de um profeta judeu, considerado pelos seus seguidores como a encarnação de Deus. Apenas a partir do século II, os cristãos começaram a sentir a necessidade de formular o cristianismo em termos filosóficos, para se defenderem dos ataques dos filósofos pagãos.
Os primeiros três séculos do cristianismo foram de intensos debates sobre a nova doutrina, para a qual diferentes interpretações foram propostas, algumas incorporando elementos das filosofias não-cristãs vigentes. Poderíamos classificar didaticamente as seguintes tendências em confronto nesse período:
·         Filósofos não-cristãos combatendo as teses cristãs, apoiando-se, sobretudo, no neoplatonismo e no estoicismo.
·         Filósofos cristãos que, com o tempo, foram se afirmando como ortodoxos (ortodoxia é a doutrina que se pretende como a verdadeira). Desta tendência derivou-se a doutrina católica, que acabou prevalecendo também por motivos políticos, pois o imperador Constantino, ao converter-se ao cristianismo e torná-lo a religião oficial do Estado, adotou a versão católica como a oficial, banindo todas as outras propostas (a partir do Concílio de Nicéia em 325 d.C.). Esses pensadores também se apoiaram no neoplatonismo e integraram a teologia judaica ao cristianismo.
·         Filósofos cristãos que, com o tempo, foram sendo considerados pelos ortodoxos como heréticos (heresia vem do grego e significa escolha – uma escolha diferente ou oposta à ortodoxia). Estes integravam também elementos neoplatônicos e de doutrinas orientais. Eusébio de Cesaréia (século IV d.C.), um defensor da doutrina ortodoxa, em seu livro História eclesiástica, escrito a pedido de Constantino, comenta vinte diferentes formas de heresia.
Esse foi um processo dinâmico e polemico. Como exemplo disso, pode-se citar o caso de Orígenes (século III d.C.), considerado um dos pais da Igreja, como definiu Eusébio de Cesaréia. Orígenes foi autor de cerca de oitocentas obras de filosofia cristã, nas quais integrava uma cosmovisão platônica e neoplatônica com a mensagem revelada por Jesus.
No entanto, no Concílio de Constantinopla (553 d.C.), a obra de Orígenes foi condenada pela Igreja Católica por conter duas idéias combatidas pela já constituída ortodoxia: a preexistência da alma (que a abria a possibilidade para a doutrina da reencarnação) e a subordinação de Jesus a Deus, abalando o conceito da Trindade (três pessoas iguais em uma só substância divina).
Já Santo Agostinho foi o representante da patrística, que sistematizou todo o pensamento católico que vinha se constituindo com Inácio de Antioquia, Irineu de Lion e Clemente de Alexandria (mestre de Orígenes). A princípio, Agostinho era maniqueísta, uma das correntes da época que pregava um dualismo universal (bem e mal, luz e sombra, espírito e matéria). Depois, converteu-se a Igreja Católica e solidificou seus dogmas com uma boa articulação filosófica e grande talento literário. Influenciado pelo neoplatonismo, aceitou as idéias inatas, a predominância do espírito sobre a matéria e a unidade de Deus como o Bem supremo – entendendo a mal apenas como a privação do bem. Mas ele não admitia a pré-existência da alma, como Orígenes.
Um ponto até hoje muito discutido em sua doutrina – que iria influenciar Lutero e Calvino, na época da Reforma – é a questão do livre-arbítrio. Existe em Agostinho uma teoria da predestinação, que defende que os que serão salvos já são previamente destinados por Deus, pois não depende do ser humano salvar-se, e sim da graça divina. Ele justificava essa idéia com o dogma do pecado original: o ser humano teria perdido a capacidade de se tornar bom devido à mancha do pecado de Adão e Eva, e apenas a intervenção divina poderia salvá-lo. Nesse ponto, Agostinho debateu diretamente com Pelágio, que considerava o contrário: se Deus havia dados aos homens o mandamento de se tornarem perfeitos é porque eles teriam os meios de fazer isso, pelo esforço e pela vontade próprios.
Agostinho também aderiu inteiramente à doutrina da Trindade, teorizando sobre ela. A questão da Trindade divina gerou polêmicas durante séculos, tendo deflagrado inúmeros conflitos. Na época de Agostinho, havia um outro teólogo cristão que seguia essa linha, cujos escritos não nos chegaram porque foram destruídos por ordem de Constantino: o padre Arius. Ele interpretava a figura de Jesus como um enviado de Deus, seu filho mais perfeito, mas não como a encarnação do próprio Deus. Esta idéia estava espalhada por todo o Império Romano, porém, no Concílio de Nicéia adotou-se a doutrina da divindade de Cristo. Arius foi banido e seus escritos, queimados.
A partir do Concílio de Nicéia, portanto, a ortodoxia católica foi se fortalecendo e se tornando hegemônica no Ocidente. A patrística dos primeiros trezentos anos, em debate com outras posições, firmou-se em uma só doutrina, predominante até o século VIII, quando se iniciam os albores da escolástica.
Assim, depois da queda do Império Romano, com as constantes invasões bárbaras, a evasão urbana e a ascensão de uma economia agrícola de subsistência, houve um declínio geral da cultura. Os filósofos latinos cristãos posteriores a Agostinho, como Isidoro de Sevilha e Boécio, fizeram apenas releituras do que já tinha sido elaborado antes deles.
Patrística: Primeiro período do que se denominou filosofia cristã, vai do século II ao VII. Foi a primeira tentativa do cristianismo de adotar uma argumentação filosófica, emprestando argumentos, sobretudo, do neoplatonismo. Caracterizou-se por um tom apologético, procurando converter os não-cristãos e rebater as discussões dentro do próprio seio do cristianismo, combatendo o que foi chamado de heresia. A patrística foi usada como elemento de divulgação do cristianismo e de formação da ortodoxia católica.
Escolástica: Termo que define o período da filosofia cristã medieval, que vai do século VIII ao XVI – embora a ruptura com suas proposições tenham iniciado no século XIV. Trata-se da estruturação da Filosofia baseada na revelação do cristianismo, comprometida com os postulados da Igreja Católica. Por extensão, chama-se de escolástico todo ensino desta tradição.

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