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quinta-feira, 14 de março de 2013

Razão e fé na Idade Média

Posted by Hijikata Toshizou on 06:52 with No comments


O sistema feudal se estabeleceu na Europa, fixando o homem no campo e estratificando a sociedade em senhores, servos e clérigos – tendo estes conservado, em mosteiros religiosos, remanescentes da cultura escrita. Na Idade Média, reis, militares, nobres e vassalos eram, em sua maioria, analfabetos. Durante os séculos V ao VIII, houve de fato um retraimento cultural enorme nos países já cristianizados e um trabalho intenso de conversão de povos que ainda mantinham ritos pagãos. A Alemanha, por exemplo, só foi plenamente convertida ao cristianismo no século VIII; a Suécia, no século XI.
Porém, enquanto o cristianismo se espalhava pela Europa e se firmava, abolindo os últimos bastiões do paganismo, estabelecendo-se na sociedade feudal, outra cultura florescia em terras do Oriente Médio e do Mediterrâneo e da qual viria o renascimento da Filosofia no Ocidente: a cultura muçulmana. No seio dessa cultura, que esteve durante muitos séculos entranhada na Europa (os árabes estiveram por oitocentos anos na Espanha, sendo definitivamente expulsos de seu último bastião, Granada, apenas em 1492, ano da descoberta da América), brotaram filósofos que tinham acesso a Filosofia grega, sobretudo a aristotélica, momentaneamente perdida para a cultura cristã.
Filósofos como Al-Farabi, Avicena e Averróis trabalharam largamente com elementos da Filosofia grega, pensando-os a partir da visão islâmica, mas guardando grande originalidade e liberdade de pensamento. Avicena, por exemplo, que foi leitor de Aristóteles, também incorporou teorias neoplatônicas em suas obras. Para ele, o Universo se dividia em mundo terrestre, mundo celeste e Deus. O mundo terrestre era feito de objetos materiais, podendo ser conhecido pelos sentidos. O mundo celeste era alcançado pela inteligência e permeado de formas imateriais, que Avicena chama de anjos e espíritos. Deus é a pura essência, o Ser necessário, o primeiro motor.
Já Averróis, um árabe nascido em Córdoba, Espanha, tentou separar fé e razão, para que esta tivesse autonomia. Ele chegou a formular a tese de que existiriam duas espécies de verdade: uma religiosa e outra filosófica. A verdade religiosa dizia que Deus criou o mundo do nada; a verdade filosófica, que o mundo é co-eterno com Deus.
Tanto Avicena quanto Averróis eram médicos e deram contribuições científicas significativas nesta área.
Essa germinação árabe influenciou filósofos judeus e cristãos. A História, por um breve momento na Espanha muçulmana (em torno do ano 900), presenciou a convivência das três correntes de pensamento monoteísta em um diálogo respeitoso: islâmicos, judeus e cristãos convivendo face a face.
Os filósofos árabes, sobretudo Avicena e Averróis, tiveram influencia na formação da escolástica medieval cristã, exercendo grande impacto na maior sistematização desse período, que foi a filosofia de São Tomás de Aquino.
A partir do século VIII, temos, portanto, dois florescimentos culturais que fariam da Baixa Idade Média um momento de fecundidade: a cultura islâmica e o renascimento carolíngio (a partir de Carlos Magno, que foi coroado imperador do Sacro Império Romano). Carlos Magno queria retomar as tradições do Império e se empenhou em incentivar a cultura. Recomeçava, na Europa, a preocupação em se estabelecer escolas – que se desenvolveram neste período nos mosteiros e conventos – com a estrutura que se prolongaria durante séculos e se projetaria para a universidade, uma instituição fundada na Idade Média. Estudava-se o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e música). Scholasticus, a princípio, era o professor dessas primeiras escolas medievais; mais tarde passou a ser também professor de Filosofia e Teologia, contexto do qual se derivou o termo escolástica, característico da Filosofia desse período.
Não foi a toa que o termo veio da função docente, porque a escolástica está intrinsecamente ligada a educação. Dentro da mentalidade medieval, a Filosofia não estava comprometida com a busca livre da verdade, mas com um ensino demonstrativo, explicativo e comentado da verdade revelada por meio das Escrituras Sagradas. A subordinação da razão a fé e a preocupação de se formar cristãos fiéis aos mandamentos da Igreja Católica (que mantinha um poder hegemônico na Europa) eram traços indissociáveis da Filosofia.
O princípio da autoridade era o mais invocado na Filosofia medieval e fartamente usado inclusive pelo maior dos escolásticos: São Tomás. Trata-se de invocar o apoio da Bíblia, dos pais da Igreja, dos concílios católicos e mesmo de filósofos pagãos para apoiar a própria argumentação. É uma forma de pensar sempre recorrente a tradição, o que revelava o seu posicionamento conservador.
Outro aspecto da Filosofia medieval era o seu entrelaçamento com a ordem social estabelecida. Para o cidadão de então, tratava-se de uma ordem divina e as hierarquias terrenas refletiam as hierarquias celestes. Assim, a autoridade máxima na Terra era justamente a do Papa, por representar para os católicos a autoridade herdada diretamente de Deus.
Mesmo neste contexto de restrições ao livre pensar – ou, pelo menos, de um pensar condicionado à religião – houve pensadores brilhantes. O primeiro deles, ainda em um período pré-escolástico, foi João Escoto Erígena, monge irlandês do século IX que escreveu várias obras com influência agostiniana e dos patrísticos gregos. Para ele, não existia contradição entre a fé e a razão, entre a autoridade da Bíblia e a investigação livre do homem. Essa sua visão deriva de uma postura muito otimista em relação ao ser humano que, para ele, possuía uma razão divina em si; portanto, a autoridade das Escrituras e dos grandes filósofos se identificava com a razão investigativa, pois ambas procediam da mesma fonte: a divindade.
Outra grande personalidade da Filosofia medieval, destacando-se como um precursor do racionalismo moderno e perseguido pelo dogmatismo da Igreja, foi Pedro Abelardo, cuja elaboração filosófica coincide com o nascimento da universidade. Ele lecionou na Escola da Catedral de Nossa Senhora de Paris, que se tornaria a Universidade de Paris. Abelardo proclamou em pleno contexto medieval a soberania da razão. Sem renegar a fé cristã, propôs a investigação racional como critério único de verdade, incluindo a dúvida como instrumento necessário para essa investigação.
A universidade, a partir de Abelardo, ganhou o status de fórum de ensino e discussão filosófica. Nessa instituição, ficava claro o entrelaçamento necessário entre formação e investigação na Filosofia medieval. As aulas eram constituídas em dois formatos: a lectio e a disputatio. A primeira, traduzida por leitura, era o comentário sobre um texto, e a segunda, traduzida por disputa, era o exame e a discussão de prós e contras de determinada idéia. Essas disputas tinham um caráter estimulante e muito participativo, pois havia questões propostas pelos próprios alunos, debates públicos entre professores com diferentes pontos de vista, e debates entre professores e alunos – com a presença de ouvintes até de outras cidades. Jacques Le Goff, historiador medievalista, descreve em sua obra Os intelectuais da Idade Média a efervescência desses debates nas universidades medievais.
São Tomás de Aquino foi o maior sistematizador da filosofia escolástica medieval, com formulação do que se tornaria a doutrina oficial católica, válida até hoje. Ele, em última análise, sempre sujeitou a razão à fé, mas aceitava uma esfera de racionalidade que estaria aquém da revelação bíblica. Existiria, na sua concepção, uma razão natural, como que uma presença de pressupostos básicos na mente humana, pelo simples fato de sermos humanos e criaturas de Deus. A revelação divina completaria o que falta a essa razão humana, que, apesar de funcionar e ser respeitada em seus domínios, é limitada. Nesse sentido, Aquino usa a invocação da autoridade, mas incluindo a autoridade de Aristóteles e outros filósofos pagãos no que se referia aos temas da razão natural. Por exemplo, na questão de Deus, ele usa, predominantemente, argumentos de Aristóteles e de Avicena – um pagão e outro muçulmano – para provar a Sua existência e os Seus atributos. Porém, ele os completa com a fé católica quando se refere ao mistério da Santíssima Trindade.
Dentro do método da disputatio, Tomás escreveu em numerosos volumes a sua mais vasta obra: A suma teológica. Em forma de exame de prós e de contras, para chegar a uma afirmação qualquer, coloca a razão a serviço da fé, sem deixar, no entanto, de realizar um exercício de racionalidade bastante amplo e profundo.
O último dos escolásticos – ou o primeiro dos modernos – que provocou a primeira crise séria na tradição medieval foi o inglês Guilherme Ockham, no século XIV. Ele propôs o desligamento de todo compromisso entre razão e fé, optando por um caminho de investigação empírica e independente. Com isso, deixou à fé a possibilidade de um vôo mais livre. Além disso, no plano político, também propôs que a autoridade papal se desligasse do poder temporal e ficasse restrita apenas a sua liderança espiritual.
Racionalismo: Atitude filosófica que considera a razão humana como um instrumento capaz de captar a realidade, considerada ela mesma racional. O uso do discurso lógico, da análise e da dedução é próprio das atitudes racionalistas. Nessa vertente, parte-se do pressuposto de que o ser humano é um ser racional e de que o mundo tem uma ordem intrínseca, que pode ser desvendada pela razão. Também se considera que a razão humana tem idéias inatas, intuições que não precisam passar pela verificação empírica.